"A identidade alicerça-se em capacidades e em valores, no que somos capazes de compreender do mundo e no significado que damos às nossas vidas". (Sônia R.R.Rodrigues)

quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Morre o ator e apresentador Rolando Boldrin

Legenda da foto: Morre o ator e apresentador Rolando Boldrin

Publicado originalmente no site G1 GLOBO, em 9 de novembro de 2022  

Rolando Boldrin, ator, cantor, compositor e apresentador, morre em SP aos 86 anos

Com o 'Sr. Brasil', da TV Cultura, o qual apresentou por 17 anos, Boldrin 'tirou o Brasil da gaveta' e fez coro com os artistas mais representativos de todas as regiões do país, diz nota da Fundação Anchieta. Ele participou de diversas novelas e ainda apresentou programas como 'Som Brasil' na TV Globo.

Por Larissa Calderari, TV Globo e g1 SP

O ator, cantor, compositor e apresentador da TV Cultura Rolando Boldrin morreu nesta quarta-feira (9) aos 86 anos, em São Paulo. A causa da morte foi Insuficiência respiratória e renal, segundo informações da emissora. Ele estava internado no Hospital Albert Einstein havia dois meses.

O velório de Boldrin será realizado na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) nesta quinta-feira (10), das 8h às 15h, e será aberto ao público. Ele será velado no Hall Monumental, e o acesso para visitação do público será feito pelo portão do estacionamento localizado na avenida Pedro Álvares Cabral, 201, apenas para pedestres. O sepultamento ocorrerá no cemitério Gethsêmani Morumbi, às 17h.

Com mais de 60 anos de carreira na TV, Rolando Boldrin apresentou o programa musical "Sr. Brasil" por 17 anos. Com grandes sucessos, Boldrin se consagrou como um dos principais expoentes da cultura sertaneja e das raízes da música caipira no Brasil.

"Ele tirou o Brasil da gaveta' e fez coro com os artistas mais representativos de todas as regiões do país. Em seu programa, o cenário privilegiava os artesãos brasileiros e era circundado por imagens dos artistas que fizeram a nossa história, escrita, falada e cantada, e que já viajaram, muitos deles 'fora do combinado', conforme costumava dizer Rolando", diz nota da TV Cultura.

Um dos grandes sucessos de Boldrin na televisão foi o Som Brasil, que começou no rádio e estreou na TV Globo em 1981. O programa foi criado pelo próprio artista.

No Som Brasil, Rolando Boldrin contava causos, dançava e exibia peças teatrais e pequenos documentários. Mas o destaque eram as atrações musicais com forte apelo à cultura popular brasileira.

Na televisão, ainda apresentou os programas “Empório Brasileiro” na TV Bandeirantes e “Empório Brasil” no SBT. Na TV Cultura, estava à frente do “Sr. Brasil” desde 2005.

Boldrin também fez carreira na teledramaturgia. Como ator, Rolando atuou em mais de 30 novelas, como “O Direito de Nascer”, “As Pupilas do Senhor Reitor”, “Os Deuses Estão Mortos”, “Quero Viver”, “Mulheres de Areia”, “Os Inocentes”, “A Viagem”, “O Profeta”, “Roda de Fogo”, “Cara a Cara”, “Cavalo Amarelo” e “Os Imigrantes”.

Segundo a nota da Fundação Padre Anchieta, Boldrin dizia que era fundamentalmente um ator: "esse tem sido meu trabalho a vida inteira; radioator, ator de novela, de teatro, de cinema, um ator que canta, declama poesias e conta histórias”, falava.

Biografia

Boldrin era o sétimo filho de uma família de 12 irmãos, nascido em 22 de outubro de 1936.

Saído do interior de São Paulo, da cidade de São Joaquim da Barra, ele virou ator de filmes premiados e de novelas acompanhadas no Brasil inteiro e até no exterior, tornando-se compositor, cantor, apresentador e, claro, grande contador de causos.

A voz inconfundível de Rolando Boldrin se tornou em um sucesso na Rádio São Joaquim da Barra. De lá, o artista passou a fazer narrações de grandes projetos nacionais.

Na música, o Boldrin gravou 174 obras de diversos estilos musicais ao longo de 60 anos de carreira.

Além do rádio, da música e da televisão, Boldrin também trabalhou no cinema, com os filmes "Doramundo", "O Tronco" e "O Filme da Minha Vida".

"A TV Cultura agradece pela honra de ter contado com o brilhantismo de Boldrin em sua programação. E manifesta os mais sinceros sentimentos aos familiares e amigos deste artista gigante que jamais será esquecido", diz a nota.

Texto e imagem reproduzidos do site: g1.globo.com/sp

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Conheça origem, trajetória e influências de Bráulio Bessa

Publicado originalmente no site CULTURADORIA, em 20 de julho de 2021  


Conheça origem, trajetória e influências de Bráulio Bessa 


Após o sucesso da declamação de cordéis na TV e nas redes sociais, o poeta cearense tornou-se poeta best-seller 


Publicado por Laura Rossetti | Participante do 1º Laboratório Culturadoria de Jornalismo e Crítica Cultural: Olhares e Processos | Colunista do Culturadoria 


“Quando a falta de esperança/decidir lhe açoitar, /se tudo que for real/for difícil suportar…/É hora do recomeço./Recomece a SONHAR”. Você, provavelmente, já leu ou ouviu estes versos em algum vídeo enviado no grupo de sua família no WhatsApp. Eles foram escritos por Bráulio Bessa e fazem parte do poema “Recomece”, que, segundo o próprio autor, tornou-se um de seus “clássicos”, pois trata-se do poema pelo qual ele é geralmente reconhecido. 


O poeta nordestino ganhou notoriedade nacional a partir de 2014, quando começou a declamar suas poesias de cordel no Encontro com Fátima Bernardes, da TV Globo. O quadro apresentado por ele no programa se chamava “Poesia com rapadura”, nome dado, posteriormente, ao primeiro livro do autor, publicado em 2017. Contudo, sua atuação na difusão da cultura nordestina é bem anterior a isso. Abaixo, contaremos um pouco da trajetória e das influências deste artista que, atualmente, é nome de destaque na poesia brasileira.

 

Trajetória 


Bráulio Bessa Uchoa nasceu em 1985, no pequeno município de Alto Santo, no interior do Ceará. Foi na escola que teve contato, pela primeira vez, com a poesia nordestina. A partir daí, passou a admirar e a frequentar cantorias de viola em sua cidade. Ainda adolescente, participou de grupos de teatro de rua, e até fez parte de uma banda chamada Alto Samba.  


Sua crescente paixão pela cultura do Nordeste fez com que Bessa criasse, em 2011, uma página no Facebook, chamada Nação Nordestina, para publicar conteúdos sobre tradições, expressões populares e culinária da região. A página tinha mais de um milhão de seguidores, quando, em 2014, o escritor publicou um vídeo em que declamava o poema “Nordeste Independente”, de Bráulio Tavares e Ivanildo Vila Nova. Veja abaixo: 


A publicação foi uma resposta bem-humorada aos ataques que os nordestinos estavam sofrendo nas redes sociais. Isso ocorreu após a apuração dos votos da eleição presidencial daquele mesmo ano. Dessa forma, não demorou para que o vídeo viralizasse. Bráulio Bessa foi, então, convidado, pela equipe do Encontro, a falar, no programa, sobre o preconceito histórico contra seu povo. 


Popularidade 


Desde então, a popularidade de Bessa cresceu bastante, e ele se tornou um fenômeno nas redes sociais. Seus vídeos a declamar os próprios cordéis cativaram milhões de brasileiros, contribuindo com a recente tendência de crescimento das vendas na categoria de “poesia nacional”. 


De acordo com dados da empresa de pesquisa de mercado GfK, as vendas na categoria aumentaram 107%, entre os meses de janeiro e agosto de 2018, em comparação ao mesmo período do ano anterior.

 

O aumento reflete, justamente, a popularização da poesia no espaço virtual, onde jovens poetas publicam textos e conquistam milhares de seguidores, como é o caso de João DoederleinRyane Leão e Zack Magiezi. Assim, os livros de poesia desses e de outros autores ganharam espaço na lista de best-sellers do país. 

Influências e literatura de cordel 


Aos 14 anos, por meio de um trabalho da escola, Bráulio conheceu a poesia de Patativa do Assaré, importante cantador, violeiro e repentista cearense. Segundo o artista, foi a partir daí que sua relação com a arte se estreitou. A escrita marcadamente regional de Patativa encantou Bessa, e ele logo passou a sonhar em se tornar poeta. 


Inspirado pela obra do cantador de Assaré, começou a escrever poemas no mesmo estilo informal. Sendo assim, usava rimas e métrica, próprio da literatura de cordel. A manifestação literária surgiu no interior do Nordeste e se popularizou no final do século XIX. 


O nome “cordel” remete ao fato de que, à época, tais poemas eram impressos em folhetos expostos, nas feiras, em cordas ou barbantes. Geralmente, os cordéis versam sobre a vida no sertão, a seca e a fome, além de abordarem a cultura, os costumes e as tradições nordestinas. 


Ainda na escola, Bessa conheceu a arte da declamação de poemas, ao ouvir um CD do grupo musical pernambucano Cordel do Fogo Encantado. A forma como o vocalista Lirinha declamava os cordéis fez Bráulio se interessar pelas técnicas de oralidade da poesia e, desse modo, construir seu próprio estilo. 


Livros publicados 


Além de Poesia com rapadura, Bráulio publicou outros dois livros: Poesia que transforma (2018, Editora Sextante), e Um carinho na alma (2019, Editora Sextante). Ambos foram muito bem recebidos pela crítica, tendo conquistado elogios de grandes artistas brasileiros, como Milton Nascimento, Xico Sá, Lázaro Ramos e Juliana Paes. 


Bessa também publicou um pequeno livro interativo – que apresenta perguntas a serem respondidas pelo leitor – chamado Recomece, em 2018. O título faz referência a um de seus poemas mais conhecidos. Atualmente, o poeta trabalha em novo livro, ainda sem data de lançamento. 

 
Laura Rossetti cursa o 8º período de Jornalismo na PUC Minas. Possui experiência em assessoria de imprensa e produção de conteúdo na área cultural. Tem um blog chamado Registros de Bolso onde publica poemas, crônicas, resenhas de livros e outros textos autorais. Em seu tempo livre, adora ler, bordar e assistir filmes dramáticos. Participou da primeira turma do Laboratório Culturadoria de Jornalismo e Crítica Cultural. 

Texto, imagem e vídeo reproduzidos dos sites:  culturadoria.com.br e youtube.com 

  

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Cantor Genival Lacerda morre aos 89 anos...

Texto publicado originalmente no site G1 PE, em 7 de janeiro de 2021  

Cantor Genival Lacerda morre aos 89 anos por complicações da Covid-19, no Recife

Artista estava internado desde 30 de novembro no Hospital da Unimed. Com carisma e irreverência, cantor foi um dos ícones do forró.

Por G1 PE

O cantor e compositor Genival Lacerda morreu aos 89 anos, no Recife, em decorrência de complicações da Covid-19, nesta quinta-feira (7) (veja vídeo acima). Artistas e políticos lamentaram, nas redes sociais, a morte do paraibano e a prefeitura de Campina Grande, cidade natal de Genival, decretou luto de três dias.

O artista foi internado no dia 30 de novembro de 2020, no Hospital Unimed I, na Ilha do Leite, na área central da capital pernambucana. Com Covid-19, ele foi levado para a Unidade de Terapia Intensiva (UTI).

No dia 4 de janeiro, Genival Lacerda teve uma piora no quadro de saúde, segundo o boletim divulgado pela família. Na quarta (6), a família havia iniciado uma campanha de doação de sangue para o cantor.

Em 26 de maio de 2020, Genival Lacerda havia sofrido um Acidente Vascular Cerebral Isquêmico (AVC) e deu entrada no Hospital d’Ávila, na Zona Oeste da capital pernambucana. Recuperado, ele teve alta três dias depois de ser internado.

De acordo com a assessoria de imprensa do cantor, o corpo do artista deixa o Recife por volta das 13h e segue para ser sepultado em Campina Grande, ao lado do da mãe de Genival, Severina Lacerda.

Perfil

Genival Lacerda foi um dos grandes nomes do forró e, com carisma e irreverência, se tornou um ídolo popular. Conhecido por todo o Brasil durante 64 anos de carreira, era um símbolo da cultura do Nordeste.

O cantor e compositor nasceu em Campina Grande, na Paraíba, em 5 de abril de 1931. Chegou a trabalhar na cidade como radialista, mas fez a primeira gravação como cantor quando já morava em Recife, para onde se mudou em 1953.

Genival gravou seu primeiro disco em 1956, um compacto duplo com "Coco de 56", escrito por ele e João Vicente, e o xaxado "Dance o xaxado", feito por ele com Manoel Avelino.

Ele gravou diversos álbuns e ficou conhecido pelo Nordeste como músico e radialista durante esta fase no Recife.

Em 1964, se mudou para o Rio de Janeiro. A consagração nacional veio com "Severina Xique Xique", de 1975. O refrão "ele tá de olho é na butique dela" virou sua marca.

Em seguida, vieram sucessos como "Radinho de pilha", "Mate o véio" e "De quem é esse jegue", que consolidaram o estilo bem humorado do "seu Vavá", como também era conhecido.

O músico viveu no Rio durante o auge da popularidade do forró no Sudeste, e conviveu com outros artistas fundamentais do estilo como Dominguinhos e Luiz Gonzaga.

Com Jackson do Pandeiro, teve uma relação ainda mais próxima, mesmo sendo bem mais novo. A irmã de Jackson, Severina, foi casada com um irmão de Genival.

Desde os anos 90, voltou a morar no Recife e, em 2016, ganhou título de cidadão recifense da Câmara dos Vereadores. Nos últimos anos, não tinha novos sucessos nas rádios, mas manteve o ritmo de shows e o reconhecimento popular.

No final de 2017, recebeu no Palácio do Planalto a medalha da Ordem do Mérito Cultural (OMC). Na cerimônia, Genival tirou seu chapéu estampado de bolinhas ao passar diante do então presidente Michel Temer.

Na sexta-feira (8), estava previsto o lançamento de uma faixa do DVD "Minha Estrada", com a participação de artistas nordestinos, que foi gravado no Teatro Boa Vista, em agosto 2019. Em 13 de dezembro, aniversário de Luiz Gonzaga, foi feito o primeiro lançamento de faixa.

Apesar do falecimento de Genival, o lançamento da canção com o artista Zé Lezin, está mantido. "O artista faleceu, mas a obra dele vai ficar", disse a assessora da família, Manuela Alves. Ao todo, são 15 faixas, com um lançamento por mês. A divulgação acontece pelas redes sociais e por plataformas digitais.

Genival deixou dez filhos, além de netos e bisnetos.

Genival Lacerda será sepultado em Campina Grande, ao lado do corpo da mãe

Texto e imagem reproduzidos do site: g1.globo.com/pe

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Morre Raimundo Aniceto, o eterno mestre da banda cabaçal...

Mestre Raimundo Aniceto.

Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em 16 de outubro de 2020

Morre Raimundo Aniceto, o eterno mestre da banda cabaçal e força motriz da cultura popular

O mais velho integrante do grupo Irmãos Aniceto dedicou mais de 80 anos à cultura popular e transformou sua própria casa em museu para preservar a arte de várias gerações de sua família

Por Beatriz Jucá

Calou-se o pífano de Raimundo Aniceto. Morreu nesta quinta-feira o mais antigo dos integrantes da banda cabaçal Irmãos Aniceto. Enérgico mestre da cultura popular brasileira, Raimundo exaltava a ancestralidade do Cariri cearense e a magia do sertão na sonoridade do seu pífano e na dança. Vem de uma família que dança e toca há mais de 200 anos, inspirada na observação da natureza e na sonoridade transmitida de pai para filhos pelo ouvido. Raimundo era o último vivo de sua geração do grupo e já dedicava 80 de seus 86 anos à arte popular. Durante décadas, viajou pelo Brasil e pelo exterior para mostrar a força cultural dos seus. Mas nunca se afastou do seu rincão, o Crato.

Não se deslumbrou nem mesmo com a Europa, onde fez uma turnê em 2004. “Tudo lá é muito bonito, mas eu prefiro o bairro Batateira, onde a gente mora”, disse em uma entrevista ao jornal Diário do Nordeste, quando retornou da viagem. Surpreendeu-se, sim, com “o mundo de gente” que se juntou a cada apresentação feita em praças portuguesas e espanholas. Nos últimos anos, Raimundo aceitou o convite do Sesc-Ceará para transformar a própria casa onde morava em um museu aberto. Com muita generosidade, converteu seu lar em uma rica ponte para a magia cultural do sertão. O motivo? “Meu pai me ensinou como era a cultura. A cultura é coisa séria. É onde está nossa vida”, dizia.

Fotografias de apresentações dele e dos irmãos lotaram as paredes. Geladeira, fogão e cadeiras passaram a dividir o espaço dos cômodos com dezenas de objetos históricos do grupo formado ainda no século XIX ― todos os integrantes descendentes do índio Kariri José Lourenço da Silva (o Aniceto) e de Maria da Conceição. A história está colada em placas espalhadas na sala e no corredor: os meninos (seis filhos) passaram a ser chamados de Aniceto pelo apelido do pai. Ainda criança, começaram a produzir instrumentos musicais feitos de cabaça e taboca ― o alicerce da banda cabaçal.

O tradicional pífano de Raimundo Aniceto está acomodado sobre pregos cravados nas paredes, ao lado das coloridas vestimentas dos brincantes. Mas nunca ficou ali esquecido pelo mestre como mero adorno. Nem mesmo quando o AVC que sofreu há pouco mais de quatro anos lhe roubou a capacidade de falar palavra e parte da força da mão direita. Quando estive em sua casa-museu em agosto de 2019, Raimundo tentava conversar em um idioma próprio, já que sua dicção estava muito prejudicava pela doença. Cabia à sua esposa tentar traduzi-lo, e ele se irritava quando ninguém entendia o que queria dizer. A melhor coisa no mundo que achava era receber visita e encontrava um jeito de se comunicar ― se não era possível fazê-lo pelo verbo, o fazia pela força cultural que carregava em si.

A sala então virou espetáculo para uma plateia de três pessoas, onde ele dançava e brincava sua cultura popular, na época aos 85 anos. Pegava o pífano e tirava dele ainda algum som, mesmo com a falta de força nas mãos e no sopro. Sem pronunciar qualquer palavra, tentava ensinar aos visitantes a sua arte. Esta foi uma tarefa que assumiu durante toda a sua vida: disseminar e ensinar sua cultura para que ela siga viva mesmo quando seus parentes deixam este mundo. “Meu pai faleceu aos 104 anos e deixou essa banda. Seis filhos, que são tudo tocador e artista. Hoje a banda está repleta de sobrinho, filho já dos meninos que morreram”, contou Raimundo em uma entrevista ao músico Antônio Nóbrega, há alguns anos. “A gente quer continuar como meu pai deixou. É se acabando um, e nós botando outro pra não se acabar a tradição”.

Raimundo Aniceto já não poderá agarrar aquele pífano (ou pifo) da parede. Com problemas cardíacos, ficou doente há duas semanas. Nos cinco últimos dias, esteve internado em um hospital, onde um teste confirmou também infecção por covid-19. Faleceu aos 86 anos, nesta quinta-feira. Mas a história da banda cabaçal criada pelo seu avô ao pé da chapada do Araripe, lá no Crato, deve continuar a ecoar. “Ele deixa um legado grande, fica tudo. Foi um grande homem, um grande pai e será sempre lembrado pela família e na cena cultural popular”, diz a filha, Socorro. O grupo Irmãos Aniceto agora segue com seus sobrinhos na dianteira. Não há como pegar uma zabumba feita com timbaúba e couro de bode, uma tarefa geralmente executada por Raimundo lá nos fundos de sua casa, sem lembrar do grande mestre. Sua casa-museu também seguirá aberta ao público. Como ele mesmo explicava: "A gente não quer deixar essa raiz se acabar mais nunca. Só se o mundo se acabar de uma vez só. Isso é uma alegria do nosso Brasil”.

Texto, vídeo e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com e youtube.com

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Literatura de Cordel e Acervo Arthur Bispo do Rosário...


Publicado originalmente no site Cultura, em 19 de setembro de 2018

Literatura de Cordel e Acervo Arthur Bispo do Rosário são patrimônios culturais do Brasil

O Brasil ganhou, nesta quarta-feira (19), dois novos patrimônios culturais. Em reunião no Forte de Copacabana, no Rio de Janeiro, o Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural aprovou o registro da literatura de cordel como patrimônio imaterial e o tombamento do Acervo Arthur Bispo do Rosário como patrimônio material. Nesta quinta-feira (20/9), quatro outros bens serão avaliados: Procissão do Senhor dos Passos, em Florianópolis (SC), Sistema Agrícola Tradicional das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira (SP) e os terreiros de candomblé Ilê Obá Ogunté Sítio Pai Adão, em Recife (PE), e Tumba Junsara, em Salvador (BA).

"Sou suspeito para falar do cordel. Minha bisavó, nascida no Crato (CE), me fez na infância e adolescência um leitor voraz de cordel. Contribuiu muito para a minha formação, para as minhas referências, para ser quem eu sou", destacou o ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão. "Tenho respeito e admiração pelo trabalho heroico feito pela Academia Brasileira de Literatura de Cordel para manter o gênero vivo, para que ele fosse reconhecido como importante gênero literário, de grande relevância e significado. Considero absolutamente adequado e justo o reconhecimento da literatura de cordel como patrimônio cultural brasileiro e espero que mais brasileiros tenham acesso a ela", acrescentou.

"O cordel é uma manifestação cultural que se tornou filha genuína da inteligência artística brasileira", afirmou o presidente da Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC), Gonçalo Ferreira. "O registro é a consequência natural desta importância que o gênero tem para o nosso país", observou.

O fundador da Associação dos Escritores, Trovadores e Folheteiros do Estado do Ceará (Aestrofe), Klévisson Viana, comemorou o registro da literatura de cordel como patrimônio imaterial brasileiro. "Esse reconhecimento é de extrema importância. O Brasil tem uma das literaturas populares mais ricas do planeta, tanto em quantidade como em qualidade", destaca.

"O cordel é uma tradição viva que se renova o tempo todo, que procura dialogar com cada período histórico. Hoje, são raros os cordelistas que não têm uma página na internet para divulgar o seu trabalho", completa Viana, que é autor de mais de 200 folhetos de cordel e de 38 livros, um deles – O Guarani em Cordel – vencedor do Prêmio Jabuti em 2015.

Apesar de ter começado no Norte e no Nordeste do país, o cordel hoje é disseminado por todo o Brasil, principalmente por causa do processo de migração de populações. Em todo o país, é possível encontrar esta expressão cultural, que revela o imaginário coletivo, a memória social e o ponto de vista dos poetas sobre acontecimentos vividos ou imaginados.

A Literatura de Cordel no Brasil é o resultado de uma série de práticas culturais em que os cantos e os contos constituem as matrizes para uma série de formas de expressão. Na formação da cultura brasileira, da qual a literatura de cordel faz parte, tanto indígenas quanto africanos e portugueses adicionaram práticas de transmissão oral de suas cosmologias, de seus contos e de suas canções.

Arthur Bispo do Rosário 


Com uma vida repleta de mistérios, o artista sergipano Arthur Bispo do Rosário ganhou destaque no universo da arte contemporânea sem querer. Seguindo as vozes que o ordenavam a reconstruir o mundo, deu início a suas obras, produzidas sem o propósito de serem consideradas culturais e que geraram debates sobre os limites entre a arte e a loucura.

A coleção principal é formada por 805 peças, entre elas estandartes, indumentárias, vitrines, fichários, móveis, objetos (recobertos com fio azul ou não) e vagões de espera. O acervo é composto por peças elaboradas em diversos materiais, como vidro, madeira, plástico, tecidos, linhas, botões, gesso, e diversos itens recolhidos do lixo e da sucata.

Sobre o Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural

O Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural é o órgão colegiado de decisão máxima do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), instituição vinculada ao Ministério da Cultura (MinC), para as questões relativas ao patrimônio material e imaterial.

São 26 conselheiros que representam os ministérios da Educação, das Cidades, do Turismo e do Meio Ambiente, o Instituto Brasileiro dos Museus (Ibram), o Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos), o Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), a Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e mais 13 representantes da sociedade civil, com especial conhecimento nos campos de atuação do Iphan.

Assessoria de Comunicação Ministério da Cultura
Com informações do Iphan

Texto e imagens reproduzidos do site: cultura.gov.br

quarta-feira, 4 de julho de 2018

Jozailto Lima entrevista Thiago Paulino



Publicado originalmente no site JL Política, em 30 de Junho de 2018

Thiago Paulino: “O clichê do pão e circo devora o cultural que vem de junho”

“Precisamos repensar o que há de tradição e cultura nas festas juninas”

Dele, nenhum nordestino escapa. Deu maio, e as brisas dos festejos do mês de junho bafejam de um por um os quase 60 milhões de brasileiros que habitam a região Nordeste, da Bahia ao Maranhão. Pouco importa a sua crença ou credo.

Junho é junho, e se afigura forte e bem personalizado em comidas, roupas, músicas típicas, fé e fogos. Neste sábado, 30, a fumaça quase sacra do último junho deu seu adeus. Mas daqui a 11 meses tudo se repetirá - com as chuvas de inverno, a colheita do milho, os fogos e as louvações aos três santos da hora - Antonio, 13, João, 24, e Pedro, 29.

No centro de todo essa importância, impactando ou impactadas fortemente, estão as tradições e a cultura da região, que junho tão bem sacramenta e sacraliza numa série de atitudes que que tem na música algo meio que de síntese.

E nasce daí o maior debate sobre junho: o poeirão que o poder público faz estrondosamente levantar em eventos como os de Campina Grande, na Paraíba, em Caruaru, Pernambuco, em Aracaju, Sergipe exalta e respeita as tradições e a cultura junina, ou é apenas pirotecnia de mercado e de consumo? Uma mercantilização?

O jornalista sergipano Thiago Paulino da Silva, 38 anos, bacharel em Comunicação Social pela Universidade Católica de Pernambuco, mestre em Mídia e Cultura pela UFPE e recém-doutorado em Sociologia pela Universidade Federal de Sergipe, debruçou-se por quatro anos sobre uma pesquisa nesta esfera, sai de lá com um livro chamado “Palco de disputas e disputas pelo palco no país do forró” e tem visões pouco positivas sobre tudo isso, apesar de louvar o histórico da festa.

Para Thiago Paulino da Silva, há tempos a lógica do mercado, da mercantilização, assaltou a da cultura e a da tradição e impôs palcos diferenciados e divergentes ao ciclo junino. Seu livro “Palco de disputas e disputas pelo palco no país do forró”, que é síntese da sua tese, vai (de)anunciar isso.

Na sua visão, a pauta das grandes festas públicas segue mais a linha do consumo da indústria cultural e bem menos a da tradição?, questiona-lhe uma das perguntas desta entrevista do JLPolítica. “Isso é notório e gritante”, responde Thiago Paulino, sem radicalismos.

“Essa tendência de deixar a lógica de mercado dominar os espaços de circulação da música é perigoso e, para a prática da boa cidadania, é essencial que atuemos politicamente nisso. Porque o palco não é somente diversão. É diversão também, mas é essencialmente formação de público”, diz ele.

Esta prática, fundamenta Thiago Paulino, depõe muitíssimo contra a sobrevivência da “cultura autêntica” em face de contratos que visam contemplar o cantor ou a banda que tenha mais apelo de massas. “Com certeza ela perde espaço e isso já vem se dando há um bom tempo”, reforça.

Para Thiago, mais justo e pertinente seria que a definição do mix das grandes festas públicas, que são montadas com o dinheiro do público, se desse numa discussão mais democrática e mais inclusiva dos artistas mais autênticos e que têm dificuldades de acessar os grandes palcos e as suas benesses – que vão do peso dos cachês à imponência da tecnologia.

“Porque todo artista precisa que sua música seja executada, mas não no começo ou no final de um evento, e com um cachê bem mais baixo. Isso é uma prática extremamente desumana. E ele não pode reivindicar, porque senão é cortado da programação. Mas o que é que está por trás disso? É a concepção desse palco de que falo: se for para alavancar a popularidade do prefeito ou do governador, segue-se essa lógica”, analisa.

“Isso é um ciclo vicioso que vai dar no clichê do pão e circo. Isso não só esvazia o cultural, como aproveita das palavras tradição e cultura, mesmo que de cultura nada haja. Vem daí que em Caruaru, Campina Grande e em Aracaju usem como slogan São João de Tradição e Cultura. Mas o que é que tem de tradição e cultura nesses espaços, nessas festas? Precisamos repensar isso”, denuncia Thiago.

Mas esta Entrevista Domingueira do Portal JLPolítica com Thiago Paulino da Silva não se prende somente às questões mercantis da grande festa junina. O entrevistado é instado a abordar outras esferas dela e conceitua, por exemplo, o peso de Luiz Gonzaga no ciclo junino, na música e na importância do Nordeste.

“Em apologia a um cara que vem bem depois, o Chico Science, que fala da antena fincada na lama do mangue beat, eu diria que Luiz Gonzaga foi a grande antena que não só se articulou muito com pessoas que captavam essa alma e essa essência múltipla nordestinas, como cantou muito bem isso tudo. Porque ele mesmo era um ótimo melodista. E aí conseguiu fazer com que essa música reverberasse para o Brasil todo”, diz.

Sem preocupações populistas, Thiago Paulino da Silva faz a iconoclasta defesa de que é perigosa a análise cultural que endeuse ou sacralize demais a figura de Gonzaga. “Admito até que é muito importante reconhecer quem é Luiz Gonzaga para o ciclo junino, mas entendo que endeusá-lo ou sacralizá-lo gera prejuízos para o cenário cultural. Circular muito em torno de Luiz Gonzaga pode impedir que se enxerguem outras forças que surgem”, diz ele.

Thiago Paulino da Silva é uma voz nova no universo da Sociologia. Mas vem de uma cepa antiga, e boa: é filho do professor José Paulino da Silva, um inquestionável educador sergipano-pernambucano, um doutor que emprestou sua expertise em pesquisas populares à Universidade Federal de Sergipe, da qual chegou a ser vice-reitor. Hoje é aposentado dela.

DAS VÁRIAS CAMADAS DE PERCEPÇÃO E DE INTERAÇÃO

“Quando a gente pensa na festa junina, constata-se que nela tem várias camadas de percepção e várias de interação com ela. É difícil medir quantas pessoas sabem os reais significado e sentido do que há por trás dela. Mas há um imaginário muito forte no corpo da festa”

Recém-doutorado em Sociologia, Thiago Paulino estará pondo o pé na vida acadêmica ainda este ano.

Ele está aprovado como professor assistente da UFS. Em comunicação social, teve passagens pelo Jornal do Commércio, em Pernambuco, pelo Cinform e pela TV Aparipê, em Aracaju.

Na esfera cinematográfica, por onde transita bem, foi assistente de direção e entrevistador dos documentários “Aboio e Toada” e “Herdeiros do Forró”, ambos do belga Damien Chemin. Thiago é casado como a bacharel em Direito Lavínia de Vasconcellos Góes, uma funcionária pública, com quem tem um casal de filhos - Heitor Góes Paulino, 5, e Helena Góes Paulino, 2.

Thiago Paulino da Silva é o entrevistado de número 74 da série de entrevistas do Portal JLPolítica. Vale conferir o que ele tem a dizer sobre as questões de junho e suas complexidades. Boa leitura.

DO ASSAR DOS MILHO ÀS PROCISSÕES E NOVENAS

“Os festejos em família, os comunitários, são um bom exemplo. Aquele de se estar à beira de uma fogueira, assando um milho. Há sentido em alguns campos religiosos também, nas procissões e novenas”

JLPolítica - Thiago, junho acabou de ir embora, deixando no ar a fumaça das grandes festas que se dão em nome dos três santos e da colheita de inverno, tendo o milho por ponto de partida. O brasileiro, o nordestino e o sergipano sabem o que festejam neste ciclo, ou a festa se deslocou de seu eixo e perdeu a essência de suas raízes?
Thiago Paulo da Silva - Quando a gente para pra pensar na festa junina mesmo, constata-se que nela tem várias camadas de percepção e várias outras camadas de interação com ela. Empiricamente, então, é difícil você medir assim quantas pessoas sabem os reais significado e sentido do que há por trás dela. Mas uma coisa é certa: há um imaginário muito forte no corpo dessa festa, como se fosse um amálgama que a ajuda a sobreviver.

JLPolítica - Quais são esses amálgamas?
TPS - Os festejos em família, os comunitários, são um bom exemplo. Aquele de se estar à beira de uma fogueira, assando um milho. Há sentido em alguns campos religiosos também, nas procissões e novenas. Talvez isso não esteja tão forte como tivesse sido em outras épocas da festa. A musicalidade que ainda reverbera nos migrantes das periferias urbanas é outro aspecto. A minha convivência que remete ao universo junino, por exemplo, não é a mesma convivência que meu pai, o professor José Paulino da Silva, 73 anos, teve lá no povoado pernambucano em que ele nasceu. Eu cresci num ambiente urbano e litorâneo, que é esse aqui da 13 de Julho, em Aracaju, um bairro de pescadores. Mas, de certa forma, eu tive uma conexão com junho e suas representações pelas lendas e pelas histórias que escutava em casa. E essa conexão junina vibra de alguma forma dentro de mim.

JLPolítica – Esse seria um aspecto que faz junho continuar vivo enquanto significado festivo?
TPS - Sim, ele continua vivo. Vivíssimo. Mas há diversos outros sentidos que se empregaram para esta festa. Há o de puramente diversão e entretenimento. Até certo ponto, isso provoca essa anulação da percepção de que haja três santos sendo reverenciados por esse período. Mesmo porque hoje há uma diversidade e um campo de afirmação religiosa muito forte e o entretenimento o abraça, por um questão até comercial, de público consumidor, e quer levar isso adiante. Mas há bons sentidos por trás quando uma pessoa, na frente de um palco, recebe recados de um povo migrante de algo que lhe toca a alma. E ali ele contata com uma música que lhe faz, sim, sentido.

UMA MISTURA DE CULTURAS E REGIÕES

“Os compositores que mais contribuíram para esse universo junino juntamente com Luiz Gonzaga, como Humberto Teixeira, Zé Dantas, eram pessoas do Nordeste, mas que já estavam na vida urbana do Rio de Janeiro lá pelos anos 40 e 50”

JLPolítica - O senhor desconhece que na base musical da festa existe uma apologia muito forte ao campo, ao mato, a um ideal sertanejo, a um nordestino mais profundo, de grotões?
TPS - Não desconheço, porque com certeza isso existe. A gente poderia dizer que há uma matriz musical e cultural simbólica das suas representações, com a qual esta festa estaria extremamente conectada e sobre a qual foi construída ao longo do seu processo histórico.

JLPolítica – Essa matriz se move?
TPS - Naturalmente, essa matriz, por ser construída, não é uma coisa estática. Ela é dinâmica, e também sofre interferências políticas e de interesses os mais diversos possíveis, como os urbanos. Os compositores que mais contribuíram para esse universo junino juntamente com Luiz Gonzaga, como Humberto Teixeira, Zé Dantas, e tantos outros, eram pessoas do Nordeste, mas que já estavam na vida urbana do Rio de Janeiro lá pelos anos 40 e 50, mas que remetiam às suas memórias de infância, que se deram no sertão.

JLPolítica - É justo afirmar que cada vez que alguém confronta tradição com modernidade dos festejos juninos está sendo passadista, conservador, e condenando a evolução nos ritmos, nas quadrilhas, nas vestes e nas comidas?
TPS - Na verdade, pensar numa festa estanque é extremamente injusto e cruel. Isso é um estigma criado por certas pessoas para não se promover um debate de fato do que são as tradições. Eu diria que tradições são invenções humanas. Eric Hobsbawm foi um autor que defendeu essa ideia e com ela eu compactuo. Agora, quando se começa criticar os que percebem que há um esvaziamento de sentido na festa, quando isso entra em debate, as pessoas responsáveis são tratadas de conservadoras, radicais e outros estigmas. Mas não o são. Portanto, não é justo, porque a tradição deve ser vista, também, como algo novo. É preciso perceber que a tradição carrega memórias e afetividades, mas que ela também se reinventa. Não deixa de haver saudosistas e conservadores que querem sacralizar e engessar a tradição, e isso acaba embotando o bom debate.

EVOLUÇÃO, MAS COM RESPEITO AO AFETIVO DAS TRADIÇÕES

“Pensar numa festa estanque é extremamente injusto e cruel. Tradições são invenções humanas. É preciso perceber que a tradição carrega memórias e afetividades, mas que ela também se reinventa”

JLPolítica – Qual seria o caminho ideal? É o que respeite o passado, mas que potencialize o futuro?
TPS - Eu acho que nesse campo é muito difícil apontar um caminho ideal. É muito complicado. Mas percebe-se que é vital para a memória afetiva de um povo que suas tradições, seus costumes e modos de vivências sejam respeitados. Isso tem um poder social muito grande. Veja o peso que é para um adolescente que vai a primeira vez a uma festa de forró. O rito de passagem a que ele é submetido é fantástico. Agora, é evidente que o jovem ou adolescente que escuta e curte a música junina hoje não é o mesmo para quem Humberto Teixeira compôs e Luiz Gonzaga gravou.

JLPolítica - Mas é justo que o adolescente de hoje tenha por Wesley Safadão um endeusamento e nutra uma anulação por Luiz Gonzaga?
TPS – Não. Claro que não. Não é justo, e é amplamente prejudicial para essa geração que isso ocorra, porque em Luiz Gonzaga e os da mesma linha dele há um riquíssimo arcabouço musical que não circularia se isso de fato ocorresse. O grande calo desses grandes palcos públicos e dessas outras questões envolvendo o ciclo de junho é o da disputa nesse cenário. Veja: tivemos agora em junho mais um Fórum do Forró, que falou sobre o coco de roda. Ele é um belo ritmo do ciclo junino também, de uma imensa riqueza. Mas se as pessoas não conseguem escutar e reconhecer nem o forró tradicional, imagine o coco e outras manifestações riquíssimas que existem neste universo. Mas quero deixar patente que a culpa não é do forró e nem do coco. 

JLPolítica - No ciclo junino, quem mais sofre alteração ano a ano entre música, vestimenta e alimentação? Quem é mais passivo de mudanças?
TPS - Desses três setores, o que estudei foi o da música. E eu sei dos prejuízos que a música sofre. Para a música, é vital a experiência da circulação no ciclo junino para a sobrevivência dela. Ela e o artista responsável por sua existência precisam ser escutados e dançados. Para o artista, vem da música uma forma de renda que lhe dê segurança, e você percebe que existe até uma certa ação e tendência de artistas do ciclo de quebrar essa sazonalidade. Mas eu não sei quantificar até que ponto essa estrutura comercial prejudica a comida típica e a vestimenta. Na verdade, uma dada música desse ciclo sofre por não ter espaço para circulação.

O PESO DO SÃO JOÃO X CARNAVAL

“A mercantilização está presente tanto no Carnaval quanto no São João. Mas talvez os festejos juninos toquem mais a alma do sertanejo, do povo do interior. Vejo o carnaval mais como um peso urbano, mais do operário”

JLPolítica – É possível mesclar e preservar?
TPS – Eu diria que há saídas criativas. Eu vi agora em Aracaju, por exemplo, um show da Luci Alves, muito interessante. Porque, ao mesmo tempo que ela executou um bloco de músicas com som de violino, que parecia rabeca, cativando o público com vários cocos, vários clássicos do cancioneiro popular de época que algumas pessoas não conheciam, mas que Elomar e Xangai já cantaram, ela também trouxe um ciclo de músicas extremamente voltadas para um gosto mais contemporâneo e dançante, como o funk. Veja que em Salvador os forrozeiros se uniram e criaram a Lei da Zambumba, que reivindica uma cota para que os artistas locais pudessem tocar. O Chico César já lidou com isso, por entender que esse espaço de circulação da música é vital.

JLPolítica - Mas é democrático fechar por lei caminhos a outras experimentações musicais?
TPS – Não acho que esse seja o melhor caminho. Eu defendo que se compreenda qual tipo de proposta se pretende para um evento público da magnitude dos que se passam em junho.

JLPolítica - Dá para fazer um paralelo de importância e peso entre o São João e o Carnaval para o Nordeste mais profundo, aquele do interior, tirando Salvador e Recife?
TPS - Acho que em termos de alegrias e espontaneidades, eles têm um paralelo. Mas creio que cabe um paralelo também do São João com o Natal, porque tem em ambos um sentido religioso, e que se impregna de um renascimento. Mas o elemento mercantilização está presente tanto no Carnaval quanto no São João. Mas talvez os festejos juninos toquem mais a alma do sertanejo, do povo do interior. O carnaval eu vejo mais como um peso urbano, mais do operário. O Carnaval é uma ocorrência que se dá muito em polos que acarretam massas para dançar.

O QUE É A MÚSICA JUNINA?

“É uma música está dentro desse universo, que resgata essa matriz cultural simbólica. Que de fato vibra na alma do povo nordestino, do cara que usa música para a alegria da colheita, mas também do que está na periferia de São Paulo”

JLPolítica - Luiz Gonzaga é consequência do São João ou o São João é consequência Luiz Gonzaga?
TPS - Acho que são duas “entidades” extremamente imbricadas, embora entenda que o São João é anterior a Luiz Gonzaga. Eu diria que Luiz Gonzaga foi um grande sucesso de mercado e por ter sido ele que conseguiu ampliar as fronteiras do que é o Nordeste para o Brasil. Há o depoimento no meu livro de um pessoal do extremo Sul do Brasil revelando que numa coloniazinha alemã botava-se os LPs de Luiz Gonzaga para fazer os bailes. Essa força vem uma conjunção de fatores: da genialidade do cara, mas também de uma indústria fonográfica forte e de um projeto político e desenvolvimentista de Estado que abraçou de uma certa forma o ideal dessa música. Convém ressaltar, também, que o Nordeste nunca deixou de ter seu peso cultural. Seria mais rico e seguro dizer que nós temos identidades no Nordeste - no plural.

JLPolítica – Dá para pensar o ciclo de junho sem uma música chamada junina?
TPS – Creio que não. A música junina é a essência desse ciclo. Ela é a grande trilha sonora dessa festa e, ao mesmo tempo, é universal. De modo que não dá para pensar o São João sem essa música. Creio que a música é que constrói o sentido dessa festa.

JLPolítica - O que é especificamente uma música junina?
TPS – Acho que é uma música está dentro desse universo, que resgata essa matriz cultural simbólica. Uma música que de fato vibra na alma do povo nordestino, do cara que usa música para a alegria da colheita, mas também do camarada que está na periferia de São Paulo e do fazendeiro que a escuta n a sua lida. Acho que ela toca a alma desse universo. Veja que um dos conceitos interessantes de forró vem de Jacinto Silva: ele diz que o forró ressalta a simplicidade das coisas do chão. E a força dessa musicalidade - o xaxado, o xote, o baião -, sinaliza a diversidade do que chamamos de música junina. E é preciso destacar que cada ritmo traz em si um sentido: o xaxado está ligado ao ciclo do cangaço, ao modo apressado de xaxar a plantação. E tudo isso se conecta com o povo e faz este caldeirão ser tão rico.

LUIZ GONZAGA NO CONTEXTO DA FESTA JUNINA

“Ele estava bem situado numa época histórica e se fez a pessoa certa para isso. Não se pode tirar a autonomia e a genialidade dele. Gonzaga representa toda uma musicalidade que ele escutava na infância”

JLPolítica – Mas qual é, particularmente, a importância de Luiz Gonzaga neste contexto?
TPS - Em apologia a um cara que vem bem depois, o Chico Science, que fala da antena fincada na lama do mangue beat, eu diria que Luiz Gonzaga foi a grande antena que não só se articulou muito com pessoas que captavam essa alma e essa essência múltipla nordestinas, como cantou muito bem isso tudo. Porque ele mesmo era um ótimo melodista. E aí conseguiu fazer com que essa música reverberasse para o Brasil todo. Digamos que Luiz Gonzaga estava talvez bem situado numa época histórica e se fez a pessoa certa para isso. Não se pode tirar a autonomia e a genialidade dele. Mas Gonzaga não é Luiz Gonzaga somente, ou sozinho. Ele representa toda uma musicalidade que ele escutava na infância, daquele vendedor de cavacos, que passou tocando um triângulo e ele montou o trio pé de serra incorporando isso. Na verdade, devemos admitir que Gonzaga foi um grande inventor - e nisso se insere a invenção do trio pé de serra. A gente pensa que isso vem de uma ancestralidade secular - mas vem dele, e ao mesmo tempo não deixa de ter essa ancestralidade da música negra.

JLPolítica – O senhor acha que se ele fosse vivo e estivesse em condições de palco e de show teria que tipo de acolhida de povo e de promotores de eventos juninos?
TPS – Talvez ele caísse no mesmo jogo, infelizmente, de ícones dessa música que ainda estão na ativa, como Alcymar Monteiro, Flávio José e até o próprio Dominguinhos, falecido recentemente. Isso equivale a dizer um espaço garantido, mas talvez não um em que não tocasse tanto quanto deveria tocar. Apesar disso, eu acredito que Luiz Gonzaga permanece e que se estivesse vivo e em condições de palco e de show, como alude a pergunta, talvez permanecesse até menos. Talvez não tivéssemos essa figura de um mito. Admito até que é muito importante reconhecer quem é Luiz Gonzaga para o ciclo junino, mas entendo que endeusá-lo ou sacralizá-lo gera prejuízos para o cenário cultural. Esse tema foi inclusive levantado pelo cantor e compositor Silvério Pessoa no Fórum do Forró deste ano. Circular muito em torno de Luiz Gonzaga pode impedir que se enxerguem outras forças que surgem.

JLPolítica - O senhor debruçou-se durante quatro anos sobre uma tese de doutorado nesta esfera de junho e vem com um livro chamado “Palco de disputas e disputas pelo palco no país do forró”. Qual é a síntese da sua pesquisa?
TPS - É a de que existem dois tipos de palcos. Um, que é a própria programação dos festejos juninos – espaço físico, horário, tempo -, no qual se precisa subir para que a música circule. E o forrozeiro tradicional sofre para acessar este tipo de palco. Ele tem de atravessar uma série de disputas, inclusive políticas e econômicas, para fazer com que a sua música circule. E existe um outro palco e um cenário de disputa mais amplo, que seria o histórico e social, no qual você tem de enfrentar forças macroeconômicas que regem e empurram as coisas para privilegiar certos gêneros em detrimentos de outros. Um Forrócaju está dentro de um sistema de espetáculos e megashows que surge lá pelos anos 90 e que traz uma nova concepção que esvazia o protagonismo do povo na festa. Para o artista forrozeiro que está acostumado a uma outra dinâmica social, adentrar um palco desses lhe exige uma série de etapas. Existem práticas de clientelismos políticos, de privilégios, e de forças que interferem nos critérios de escolha de um artista para esse palco.

PERIGO DE ENDEUSAR OU SACRALIZAR LUIZ GONZAGA

“Admito que é muito importante reconhecer quem é Luiz Gonzaga para o ciclo junino, mas endeusá-lo ou sacralizá-lo gera prejuízos para o cenário cultural. Circular muito em torno de Gonzaga pode impedir que se enxerguem outras forças que surgem”

JLPolítica - Na sua visão, a pauta das grandes festas públicas segue mais a linha do consumo da indústria cultural e bem menos a da tradição?
TPS - Isso é notório e gritante. Em abril foi divulgada a programação do São João de Campina Grande, na Paraíba, e nela não constava o nome de Elba Ramalho. Por que? Porque toda a programação dali estava sendo gerenciada por uma empresa. Houve uma terceirização, algo parecido com o que se deu aqui em Aracaju na gestão de João Alves Filho, com o Teo Santana assumindo – e quando uma empresa externa assume, os critérios passam a ser dela. Elba só teria entrado por causa de uma intervenção política. Essa tendência de deixar a lógica de mercado dominar os espaços de circulação da música é perigoso e, para a prática da boa cidadania, é essencial que atuemos politicamente nisso. Porque o palco não é somente diversão. É diversão também, mas é essencialmente formação de público.

JLPolítica - O senhor acha que a “cultura autêntica” - se é que não há risco nesta afirmação - perde quando o contrato destes artistas de junho pelo agente público é feito visando o cantor ou banda que tem mais apelo de massas?
TPS – Com certeza ela perde espaço e isso já vem se dando há um bom tempo. Porque todo artista precisa que sua música seja executada, mas não no começo ou no final de um evento e com um cachê bem mais baixo. Isso é uma prática extremamente desumana. E ele não pode reivindicar, porque senão é cortado da programação. Mas o que é que está por trás disso? É a concepção desse palco de que falo. Se for para alavancar a popularidade do prefeito ou do governador, segue-se essa lógica. Claro que existe uma pressão também sobre o gestor, e ela vem de por onde a música circula nas rádios, e esse gestor cede naturalmente, porque ele quer que esse palco gere a promoção da sua gestão e da sua popularidade. Isso é um ciclo vicioso que vai dar no clichê do pão e circo. Isso não só esvazia o cultural, como aproveita das palavras tradição e cultura, mesmo que de cultura nada haja. Vem daí que em Caruaru, Campina Grande e em Aracaju usem como slogan São João de Tradição e Cultura. Mas o que é que tem de tradição e cultura nesses espaços, nessas festas? Precisamos repensar isso.

JLPolítica - O senhor considera normal e comum que Governos de Estados e grandes Prefeituras contratem duplas sertanejas do Centro-Oeste para animar o ciclo de junho no Nordeste?
TPS - Isso na verdade foi o centro da polêmica “Devolva o meu São João”. Eu não acho que se deva completamente excluir essa tendência, mas entendo que se deva estabelecer um parâmetro mínimo de espaço para que o grosso do financiamento público e dos cachês esteja de fato ao lado da economia e da criatividade local. Dos talentos conectados ao sentido do São João. Entendo que se desvirtua completamente a festa se se botar somente sertanejos e DJs.

RISCO DA LÓGICA DE MERCADO DOMINAR JUNHO

“Deixar a lógica de mercado dominar os espaços de circulação da música é perigoso e é essencial que atuemos politicamente nisso. O palco não é somente diversão. É diversão também, mas é essencialmente formação de público

JLPolítica - O senhor acha que o Fórum do Forró, realizado há tantos anos em Aracaju, produz alguma reflexão prática ou se perdeu em intrincadas questões acadêmicas?  
TPS – O Fórum, que foi fundado por Paulo Corrêa, cumpre uma função muito importante no aspecto cultural. Mas quando ele fez 10 anos, eu resgatei num texto uma promessa que o prefeito Edvaldo Nogueira tinha feito, de criar uma Comissão pelo Fórum e que não foi cumprida. Mas esse Fórum tem a importância de nos fazer conhecer autores e histórias de forró. Eu diria que cabe ao Fórum esse papel de formação de público. Creio que o legado dele fica. Agora, ele deveria atentar para questões deliberativas práticas, como a de aliar as questões de cultura com a prática das es colas, que foi uma sugestão trazida por Silvério Pessoa. Porque isso infere na formação dos palcos que debatemos aqui. E os professores presentes saíram com a cabeça mexida por essa possibilidade. O Fórum poderia pensar, por exemplo, na capacitação dos forrozeiros para fazer com sua música ganhe a internet e circule bem mais.

Texto e imagens reproduzidos do site: jlpolitica.com.br/entrevista